por Eduardo Rosa
"Há um espírito vivendo em nós – então, naturalmente, haverá espiritualidade."
Dizer que há uma diferença entre religião, espiritualidade e espiritualidade cristã já virou lugar-comum. Mas é sempre conveniente estabelecer os limites entre elas. A religião resulta sempre de um caldo de crenças, convicções, definições e marcos concretos capazes de definir com certa precisão quem são os de dentro e os de fora. Religião e cultura estão intrincadas de tal maneira que, em muitos casos, não se sabe onde começa uma e termina outra. Conquanto sua etimologia – a origem é o termo latino religare – proponha a conexão, o religamento com o divino, a religião nem sempre pode ser considerada um ponto de contato com Deus. A religião é uma codificação de Deus, e por isso se apoia no dogma. Na mais elementar observação, é justo afirmar ser a religião uma criação humana para se aproximar de Deus.
Já espiritualidade é uma expressão do espírito, dessa dimensão misteriosa do nosso ser; de algo em nós capaz de levar-nos para alguém fora de nós. Sim, há um espírito vivendo em nós – então, naturalmente, haverá espiritualidade. Ela não precisa ser criada; necessita, isto sim, ser cultivada, pois já existe como condição natural do ser humano. A espiritualidade não é resultante da cultura, embora aconteça sempre dentro de um contexto histórico. É fato que as barreiras culturais e religiosas são melhor transpostas pela via da espiritualidade. Neste sentido, enquanto a religião é sempre uma realidade doméstica, acontecendo no âmbito da familiaridade da casa e de seus moradores, a espiritualidade é “selvagem”; ela não se deixa conter pelo lugar, pelo rito, pelas pessoas. Antes, passa pela casa, mas habita mesmo o mistério e o desconhecido. A espiritualidade quer experimentar Deus sem a obsessão de defini-lo – por isso, ela se apoia não no dogma, mas na metáfora, que é plural nos seus significados. Na mais elementar observação, é justo afirmar ser a espiritualidade uma criação de Deus para se aproximar do ser humano.
A espiritualidade cristã afirma um Deus eternamente trino, mas historicamente se alicerça em Jesus. Eis a razão pela qual nesta espiritualidade a verdade não é um dogma, mas sim uma pessoa: “Disse Jesus, eu sou a verdade e a vida; ninguém vem ao pai sem mim” (João 14.6). O cerne da vida de Jesus era sua relação com o Pai por meio do Espírito Santo. Sua inquebrável conexão com o Pai dava-lhe a invejável tranquilidade de dormir na proa de um barco em meio a uma tempestade apavorante. Por tocar e ser tocado pelo Pai, o Filho de Deus conseguia tanto tocar em leprosos intocáveis como sentir o singular toque de alguém no meio de uma multidão de mãos; podia sentar-se para descansar na casa de suas amigas Marta e Maria e comer e beber na companhia daqueles com quem a religião não aconselhava a fazê-lo. Jesus é o verdadeiro religare, em quem o divino e o humano se unem no seu estado de plenitude.
Duas tragédias podem se abater sobre a espiritualidade cristã. A primeira é quando ela é domesticada por uma religião, ainda que se denomine cristã. Nesse caso, valores são substituídos por regras; comunidades, por templos; relacionamentos, por doutrina; fraternidade. por denominação; devoção, por liturgia; conversação, por pregação; adoração, por espetáculo; serviço, por poder; graça, por lei; entrega, por consumo; ovelhas, por lobos; e a pessoa viva de Jesus, pela pálida caricatura de um ídolo, seja visível ou invisível. A segunda tragédia é tratar a espiritualidade cristã como se fosse algo fluido, sem rosto, sem âncora. Embora não seja a única espiritualidade presente no mundo, aquela que nasce de Jesus tem contornos definidos. É mistério, mas também encarnação visível do Deus invisível. É inclusiva, aberta a todos – mas exige transformação de mente e coração de todos que aceitam caminhar por suas sendas. É fundamentada nas experiências e nos relacionamentos, buscando o encontro com o coração do Pai.
Esse tipo de espiritualidade, a cristã, não é dogmática, mas racional. Ela se afirma a partir de algumas definições que a fazem singular. Ela não se deixa conter por nenhum odre religioso, mas ao mesmo tempo permite-se reduzir a uma referência histórica. Confessa um Cristo cósmico, presente em toda a Criação, porém encarnado plena e unicamente na pessoa histórica de Jesus de Nazaré. Vivemos um momento no qual o desgaste da religião institucionalizada e a explosão de diferentes espiritualidades nos impõem um reencontro com os alicerces da espiritualidade vivida por Jesus. Um retorno ao ponto no qual o Filho disse que sua vontade consistia em fazer a vontade de seu Pai. Ao que o Pai replicou: “Este é o meu Filho amado, em quem eu tenho prazer”.
Texto retirado do site:www.cristianismohoje.com.br
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