por: Luciana Fernandes Marques
A espiritualidade tem sido pouco enfatizada e focalizada
quando se trata de saúde e doença nas ciências da saúde. As pessoas que estão
bem, com saúde e bem-estar, relatam sentimentos de valores e espiritualidade e
integração com a ordem divina (chamada de formas diferentes, conforme a
religião ou sistema filosófico). Nas pessoas que adoecem, esses componentes
também se acham presentes, seja como um sentimento de abandono por Deus ou
dúvidas religiosas, seja como sementes de cura e de saúde em meio a um processo
de enfermidade.
A espiritualidade pode surgir, na doença, como um recurso
interno que favorece a aceitação da doença, o empenho no restabelecimento, a
não evitação de sentimentos dolorosos, o contato e o aproveitamento da ajuda
das outras pessoas e até a própria reabilitação. Isso nos remete à sua essência
básica (se é que se pode localizar uma essência na espiritualidade) como um
fator de saúde e realça sua importância nos processos de prevenção de doenças,
manutenção da saúde ou de reabilitação e cura.
Mesmo nas propostas mais holísticas, a espiritualidade vem
sendo marginalizada, não incluindo, no seu “biopsicossocial”, o espiritual. A
OMS (Organização Mundial da Saúde) já sinalizou uma mudança de filosofia nas
práticas de cuidado à saúde, incentivando certas práticas alternativas e
enfatizando a prevenção e a promoção da saúde (Marín, 1995). O conceito de
saúde também temse alterado e se tornado mais complexo, muitos estudos têm
acrescentado a dimensão espiritual, mas uma atenção mais acurada não tem sido prestada
a essa que é a mais sutil das esferas.
Em função dessa preocupação dos teóricos transpessoais, foi
integrado no último DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders – IV) uma nova categoria de diagnóstico que se refere a problemas espirituais
ou religiosos. A proposta foi de um grupo de clínicos transpessoais que se
deparavam com a ocorrência de emergências transpessoais (problemas,
dificuldades, angústias associados à experiências e práticas espirituais) em
pacientes clínicos (Lukoff et al., 1998).
A base teórica deste estudo é a Psicologia Transpessoal, que
é um campo de investigação, aplicação e estudos científicos sobre a
espiritualidade da natureza humana e do potencial presente em todas as pessoas
para se desenvolverem a um ponto máximo. A integração das experiências
espirituais é uma das finalidades para uma ampla compreensão da psique humana
(Washburn, citado por Smith, 1995). Essa área abrange os fatores psicológicos
que facilitam ou inibem o contato e a compreensão do fator transpessoal e os
efeitos das experiências transpessoais na vida das pessoas.
Os conteúdos básicos da Psicologia Transpessoal incluem: o
aprofundamento na religião e nas experiências religiosas, a parapsicologia, a
investigação sobre a consciência e os estados alterados de consciência
(induzidos por hipnose, relaxamento, meditação e outros) (Marques, 1996). Há
também uma preocupação pelo estudo da relação existente entre Psiquiatria,
espiritualidade e psicose, em uma forma de encarar o fenômeno que as teorias
psicológicas têm negligenciado, seja o potencial de saúde da espiritualidade,
seja a patologia espiritual. A Psicologia Transpessoal “busca uma síntese e
oferece o estudo de outros aspectos ainda não abordados e que podem ampliar a
visão do psiquismo humano” (França, 1997, p.87).
O conceito de saúde adotado neste trabalho não se restringe
à adaptação da pessoa ao meio, nem ao comportamento observável, nem à presença
de sintomas, mas reflete em que medida ela está se desenvolvendo internamente,
crescendo como pessoa, nas suas habilidades, relacionamentos e formas de
encarar o mundo. “A saúde é um continnum bipolar, onde não há um limite preciso
entre esta e a enfermidade e, sim, graus e expressões diversas, num processo de
reações diante de estímulos internos e externos” (Sarriera et. al., 1996). No
processo de saúde, a pessoa tende à plenitude de sua auto-realização como
entidade pessoal e como entidade social (Marín, 1995). É parte de um olhar
amplo, de promoção e de prevenção que enfoca a saúde como uma expressão da
realização do potencial de desenvolvimento humano, das capacidades para uma
auto-realização plena, sendo essa realização uma responsabilidade pessoal a ser
investida autonomamente, embora estimulada, apoiada e instrumentalizada
socialmente.
O que se questiona é se a pessoa que desenvolve sua
espiritualidade, que valoriza o sagrado na sua vida pode melhor proporcionar
essa atenção e cuidado à saúde integral. Kurtz et al. (1995) afirmam que há
maior probabilidade de se encontrar bons hábitos de saúde, comportamentos de
apoio aos outros e, portanto, bem-estar psicológico, em pessoas que têm uma
visão espiritual positiva frente à vida. A perspectiva espiritual inclui
conteúdos existenciais que, por sua vez, têm profundas implicações no bem-estar
físico e psicológico (Wong e Fry, 1998).
O bem-estar espiritual significa em que medida ocorre a
abertura da pessoa para a dimensão espiritual que permite a integração da
espiritualidade com as outras dimensões da vida, maximizando seu potencial de
crescimento e auto-atualização. Westgate (1996) considera que a dimensão
espiritual é um componente do funcionamento humano que atua na integração de
outros componentes. Através dessa capacidade de integração, de unidade de
vários domínios da vida, se observa que as pessoas têm a capacidade para a
saúde através da transcendência de limites ordinários. Reed (1992) dá alguns
exemplos de componentes que representam essa capacidade de transcendência e de
integração: esperança, generosidade, sentido, experiência mística e
comportamentos religiosos.
A espiritualidade parece favorecer uma ótica positiva frente
à vida que funciona como um pára-choque contra o estresse: frente a situações
perturbadoras e a eventos traumáticos, a pessoa com bem-estar espiritual
proveria significados para essas experiências e as redirecionaria para rumos
positivos e produtivos para si e para os outros. Uma das fontes dessa ação
construtiva é o sentimento de apoio emocional advindo da sua relação
significativa com o absoluto (ou, em outros termos, com Deus).
Alguns teóricos têm explorado a relação da espiritualidade
no crescimento humano, e têm se perguntado em que medida a adoção de uma
perspectiva espiritual se relaciona com a saúde geral da pessoa. Hamilton e
Jackson (1998) enfatizam que o conceito de espiritualidade é um componente
vital para o modelo holístico de saúde, que, suscintamente, considera a
inter-relação do bemestar físico, emocional, mental, social, vocacional e
espiritual. Westgate (1996) considera o desenvolvimento da espiritualidade
importante para a saúde mental, pois sem ela podem surgir sentimentos de
desesperança, sensação de falta de sentido de vida e depressão.
Em um estudo sobre essa interface saúdeespiritualidade,
Waite et al. (1999) encontraram indícios de que, em uma avaliação de
comportamentos de saúde, uma medida que contenha saúde espiritual é mais eficaz
do que outra composta apenas por variáveis psicossociais (como auto-estima,
locus de controle, senso de coerência e outras). Ditas variáveis psicossociais
muitas vezes compõem a saúde espiritual, que é mais ampla.
Um aspecto central da inter-relação saúdeespiritualidade é o
quanto a segunda oferece recursos para enfrentar situações estressantes
inevitáveis na vida, mantendo um nível ótimo de saúde. O que se tem observado é
que a eficácia no enfrentamento a determinados estressores pode ser
correlacionada com a integração de crenças, emoções, relacionamentos e valores,
na resposta da pessoa a esses estressores (Pargament et al., 1998), isto é, a
perspectiva que a pessoa assume frente uma situação estressora e o modo como
encara essa vivência são fundamentais para os resultados do seu enfrentamento.
Os resultados negativos de enfrentamento são aqueles que apontam para uma
quebra da integração interna, perda de valores religiosos, fortes sentimentos
de raiva de Deus, dúvida ou confusão no seu sistema de crenças.
A sensação de incapacidade para se adaptar às novas
exigências (fatores estressores) é uma queixa comum na enfermidade. A pessoa
não visualiza recursos para enfrentar sua situação (seja um luto, perda
econômica, desemprego) e isso é parte de um comportamento não-saudável. Os
comportamentos não adaptativos, mesmo que em si mesmos não possam ser
considerados mórbidos, conduzem a outros comportamentos ou manifestações de
enfermidade (Santacreu et al., 1992).
As dificuldades no enfrentamento por vezes se relacionam às
dificuldades de se readaptar frente a um fator estressor, como, por exemplo,
nas pessoas que têm sua rotina alterada rapidamente ou em pessoas que têm uma
rotina variada de programações imprevisíveis (como enfermeiros, bombeiros,
aviadores). Brown (1999) indica que há maior probabilidade de adoecimento em
pessoas que tiveram muitas mudanças significativas na vida em curto espaço de
tempo. Um elemento importante em um processo de adaptação são as crenças
religiosas, que dão significado e sentido à experiência estressante (Marín,
1995); um exemplo é o caso relatado por Marín (1995), no qual as pessoas
capazes de se adaptar à enfermidade crônica são aquelas que têm recursos
psicológicos para manter sua auto-estima, encontrar um sentido na enfermidade e
manter a esperança. O que se questiona é em que medida a espiritualidade pode
funcionar como um elemento organizador interno que proporcione rápida adaptação.
Chandra et al. (1998) observaram pacientes oncológicos
durante o curso do tratamento com radioterapia e detectaram uma diminuição dos
escores de bem-estar e de algumas dimensões, como a percepção do suporte
familiar e grupal, e um aumento das dimensões de sentimentos positivos,
enfrentamento, suporte social (excluindo o familiar) e bem-estar espiritual. O
que a maior parte dos estudos permite concluir é que o bem-estar espiritual é
uma experiência de apoio, de fortalecimento buscado propositadamente pela
pessoa para a realização de um enfrentamento de sucesso.
Metodologia
A amostra escolhida é da área metropolitana de Porto Alegre.
Os participantes do estudo foram adultos de 16 a 78 anos, sendo 237 homens e
269 mulheres. A amostra foi escolhida a partir do procedimento amostral
polietápico (baseado nos trabalhos de Sarriera, 1993 e Sarriera et al., 1996),
que combina diversos métodos, seqüenciados por uma série de etapas. O tamanho
da amostra é proporcional ao número de seções de cada distrito eleitoral do
município, sendo que as seções foram sorteadas.
O questionário aplicado foi composto do Questionário de
Saúde Geral, Escala de Bem-estar Espiritual e de uma parte inicial de dados de
identificação e demográficos. Para verificar a saúde geral, fez-se uso do
Questionário de Saúde Geral (QSG) de Goldberg. O QSG foi adaptado para a
realidade brasileira (Pasquali et al., 1994, p. 433) e avalia o grau de desvio
do comportamento normal, comparando o estado de saúde atual com o usual.
No QSG são 6 os fatores: (1) tensão ou estresse psíquico,
(2) desejo de morte, (3) falta de confiança na capacidade de desempenho, (4)
distúrbios do sono, (5) distúrbios psicossomáticos e um último fator, que é a
soma dos anteriores e se refere à severidade dos distúrbios psiquiátricos não
psicóticos.
A Escala de Bem-estar Espiritual (EBE, Spiritual Well-being
Scale de Paulotzian e Ellison, 1982) foi adaptada para fins deste estudo e é um
instrumento subdividido em duas sub-escalas, uma de bem-estar religioso e outra
de bem-estar existencial. Os itens referentes ao bem-estar religioso contêm uma
referência a Deus, e os de bem-estar existencial não contêm tal referência. O
bem-estar espiritual é entendido como uma sensação de bem-estar experimentada
quando encontramos um propósito que justifique nosso comprometimento com algo
na vida, e esse propósito envolve um significado último para a vida (Ellison,
1983). Essa sensação é uma síntese de saúde, um sentimento de completude e de
satisfação com a vida, de paz consigo mesmo e com o mundo, de unidade com o
cosmos, de proximidade com o Absoluto ou com a natureza (Blomfield, 1980).
O bem-estar religioso, como um fator da EBE, é considerado
como o bem-estar referente a uma comunhão e relação pessoal íntima com Deus ou
com uma força superior. É considerado como uma dimensão vertical da
espiritualidade e no item contém uma referência a Deus (números impares da
escala) (Paulotzian e Ellison, 1982).
O bem-estar existencial se relaciona àquela satisfação geral
com a vida relacionada a uma dimensão horizontal de espiritualidade, ou seja, o
bem-estar no mundo, incluindo satisfação e sentido de vida (números pares da
escala) (Paulotzian e Ellison, 1982).
Os participantes foram localizados em suas residências, em
praças, nas ruas, paradas de ônibus e tàxi e em bares, em horários variados,
inclusive à noite e nos finais de semana. Estando o entrevistador no local da
coleta, foi seguido um procedimento de amostragem que obedecia a uma certa
facilidade de acesso, quando observava disponibilidade dos respondentes, sendo
que alguns entrevistadores procuraram pelos respondentes nas suas residências.
Os instrumentos foram apresentados com um pequeno raport.
Os entrevistadores foram 11 estudantes da Faculdade de
Psicologia da PUCRS que participaram como auxiliares de pesquisa, previamente
treinados para a aplicação do questionário. Os participantes foram informados
sobre o objetivo da aplicação do instrumento e o sigilo em relação aos dados
pessoais.
Os resultados da aplicação do questionário foram codificados
e tratados pelo programa estatístico SPSSWIN. Foram realizadas análises
descritivas dos dados, correlacionais e multivariadas.
Resultados
As 506 pessoas que participaram da pesquisa tinham entre 16
e 78 anos (média de 38,03 anos e desvio padrão 15,07), sendo 237 homens (46,8%)
e 269 mulheres (53,2%).
Uma pergunta sobre a avaliação subjetiva da própria saúde:
“Como está sua saúde?”, que é uma questão relativa à avaliação subjetiva do
próprio estado de saúde: 47,4% escolheram a resposta “boa”; 31,6%, “muito boa”;
14,4% escolheram “nem ruim, nem boa”; 4,2%, “fraca” e somente 2,4% optaram por
“muito ruim”. A média geral dos 506 sujeitos recaiu em 4,01, equivalente a uma
saúde subjetiva “boa”.
O Questionário de Saúde Geral (QSG) é composto por 60
questões, com 4 opções de resposta para cada questão, de 1 (melhor saúde) a 4
(pior saúde). Ver tabela 1.
Do total da população, 17,7% teve a média geral do
questionário superior a 2,33, considerada (Pasquali et al., 1996) acima do
percentil 90, que indica distúrbio mental.
A Escala de Bem-estar Espiritual (EBE) é composta de 20
questões, com 6 opções (Likert) de respostas, indo de 1 a 6 (sendo 1 o menor
bem-estar espiritual e 6 o maior). Na tabela 2 encontram-se as médias da escala
como um único fator e dos outros dois fatores da escala, bem-estar existencial
(EXIS) e bem-estar religioso (RELIG). Nessa tabela, o maior desvio padrão é o
do bem-estar religioso, revelando maior dispersão e maior heterogeneidade do
grupo, e a média do bem-estar religioso é mais alta do que a do bem-estar
existencial.
Na análise bivariada, são buscadas associações
significativas (<0 a="" anova.="" as="" atrav="" bem-estar="" cada="" como="" correlacionados:="" dados="" das="" de="" demogr="" do="" duas="" e="" ebe="" escalas="" espiritual="" estat="" fatores="" ficos.="" foram="" geral="" identifica="" o:p="" o="" os="" qsg="" rio="" s="" sa="" scala="" stico="" teste="" todo="" uestion="" um="" vari="" veis="">0>
A questão relativa à avaliação subjetiva da própria saúde
revelou, na ANOVA, associações significativas tanto com a EBE (0,000) e seus
fatores (EXIS com 0,000 e RELIG com 0,000) quanto com o QSG (0,000) e seus
fatores. Para todos eles, apresentou 0,000 de significância. A questão
indagava: “Como está sua saúde?”.
No gráfico 1, encontra-se registrada a relação entre as
respostas da questão sobre a avaliação subjetiva da própria saúde e os fatores
do Questionário de Saúde Geral. As pessoas que consideram sua saúde fraca
(resposta 2) têm escores mais altos no QSG (ou maior índice de distúrbios).
distúrbios psicossomáticos; descon= confiança na capacidade
de desempenho; Geral= severidade da ausência de saúde mental 1=muito ruim; 2=
fraca; 3= nem ruim, nem boa; 4= boa; 5= muito boa
Na tabela 3 pode-se observar a tendência de que, quanto
melhor a avaliação subjetiva da própria saúde, maior o bem-estar espiritual,
existencial e religioso.
*1=muito ruim; 2= fraca; 3= nem ruim, nem boa; 4= boa; 5=
muito boa
Na tabela 4, a seguir, são apresentadas as duas escalas (QSG
e EBE) e seus fatores, que foram correlacionados e apresentaram associação
significativa na correlação de Pearson.
*EBE= Escala de Bem-estar Espiritual; EXIS= bem-estar
existencial; RELIG= bem-estar religioso; STREP= estresse psíquico; MORT= desejo
de morte; DESCO= Confiança na capacidade de desempenho; SONO= distúrbio do
sono; PSICO= distúrbio psicossomático; GERAL= severidade da doença mental.
**correlação significativa a 0.01.
Na tabela 4, podemos observar associações significativas, na
presença de dois asteriscos, entre as duas escalas usadas neste estudo e todos
os seus fatores. Neste dado estaria a síntese do objetivo deste estudo, que era
observar se há uma inter-relação significativa entre saúde e bem-estar
espiritual; as associações sugerem que sim.
As associações da EBE com seus fatores naturalmente são
maiores e positivas, assim como do QSG com seus fatores. As associações entre a
EBE e QSG são negativas, revelando que, quanto maior o bem-estar espiritual,
menor o distúrbio mental, e quanto maior o distúrbio, menor o bem-estar
espiritual. O resultado do questionário de saúde geral não é a saúde, mas
justamente a ausência dela, ou a severidade do distúrbio de saúde; em função
disso, as correlações entre as duas escalas são negativas. Poderia ser
afirmado, então, que a correlação entre saúde e bem-estar espiritual é positiva.
Entre as menores associações, estão bem-estar religioso e
distúrbio do sono, e bem-estar religioso e distúrbio psicossomático, e entre as
maiores, bem-estar existencial e estresse psíquico, e bem-estar existencial e
saúde geral.
A análise de regressão múltipla (stepwise) realizada revelou
que as variáveis preditoras mais significativos da EBE explicam 24,1% da
variância. Na tabela 5, estão dispostas em ordem de importância.
Os preditores do bem-estar espiritual se repetem no
bem-estar existencial, com exceção da (2.) opção religiosa e (7.) dos níveis
educacionais, e aparecem as variáveis estresse psíquico e distúrbios
psicossomáticos. A análise de regressão múltipla revelou, então, 10 variáveis
preditoras, que explicam 28,7% da variância total do fator bem-estar
existencial (ver tabela 6).
Os preditores do bem-estar espiritual também se repetiram no
bem-estar religioso, com exceção do (3.) número de filhos, (5.) sofrimento de
evento estressante, e (9.) tratamento psicológico ou psiquiátrico, e aparecendo
as variáveis idade e sexo.
Na tabela 7, encontram-se os 8 preditores mais
significativos do bem-estar religioso, que explicam 18,6% da variância total da
variável.
A tabela 8 apresenta a análise de regressão múltipla dos
cinco fatores do QSG.
* EXIS= bem-estar existencial; sexo= masculino ou feminino;
saúde 1= avaliação subjetiva da própria saúde; saúde 2= problema crônico de
saúde
As variáveis preditoras se repetem, sendo que “problema
crônico de saúde” só é preditor de distúrbio psicossomático, e “sexo” é
preditor de confiança na capacidade de desempenho, estresse psíquico (esses
dois são significativamente maiores nas mulheres) e distúrbios psicossomáticos.
Discussão e Conclusões
Este estudo teve como objetivo principal observar se a espiritualidade
se relaciona significativamente com a saúde geral das pessoas. Os dados
levantados dão suporte para se afirmar que há uma relação positiva
significativa entre saúde e bem-estar espiritual. Os testes (QSG e EBE) e todos
seus fatores obtiveram correlações altamente significativas entre si, o que
demonstra importantes associações entre os temas. Apareceu, igualmente, uma
correlação negativa significativa entre o bem-estar espiritual e a severidade
do distúrbio mental. Isso indica que um alto bem-estar espiritual se encontra
associado à saúde mental, e inversamente associado ao adoecimento mental.
Em outras variáveis, também se pode confirmar a relação
entre saúde e espiritualidade. A questão relativa à avaliação subjetiva da
própria saúde também revelou associações significativas com a EBE e seus
fatores. A tendência de que, quanto melhor a avaliação subjetiva da própria
saúde, maior o bemestar espiritual (existencial e religioso), também apoia a
idéia de uma correlação entre a saúde percebida e o bem-estar espiritual. A
saúde subjetiva, deve-se ressaltar, foi a primeira (principal e de maior
influência) variável preditora do bem-estar espiritual e do bem-estar
existencial, e foi a segunda preditora do bem-estar religioso. E ainda: um dos
fatores da EBE, o bem-estar existencial, apareceu como um dos principais
preditores do QSG e de seus fatores.
Esses dados apoiam ao que se referia Larson (1996), ao fato
de que a concepção de saúde como biopsicossocial deve ser ampliada incluindo a
dimensão espiritual. Hamilton e Jackson (1998) também enfatizam que o conceito
de espiritualidade é um componente vital para o modelo holístico de saúde que,
suscintamente, considera a inter-relação do bem-estar físico, emocional,
mental, social, vocacional e espiritual. E Westgate (1996) considera o
desenvolvimento da espiritualidade importante para a saúde mental, pois sem ela
podem surgir sentimentos de desesperança, sensação de falta de sentido de vida
e depressão. Dessa forma, se justificam como altamente relevantes os dados
encontrados por este estudo.
A partir dos preditores do bem-estar espiritual, podemos
depreender quem são as pessoas que têm maior bem-estar espiritual:
1. aqueles que avaliam ou percebem sua saúde de forma
positiva: sendo esse o principal preditor, observa-se a conexão entre
espiritualidade e saúde;
2. que têm uma religião (ao contrário daqueles que se dizem
sem religião);
3. que possuem de 1 a 3 filhos (aquelas pessoas que não têm
nenhum filho ou tem 4 filhos ou mais têm menor bem-estar espiritual): parece
que vale aqui a questão do equilíbrio, os extremos contam com menor bem-estar
espiritual;
4. não sofreram evento estressante: o evento estressante
pode apontar para uma quebra da integração interna, perda de valores
religiosos, fortes sentimentos de raiva de Deus, dúvida ou confusão no seu
sistema de crenças e alterar o mundo religioso da pessoa (Pargament et al.,
1998); 5.não têm problema crônico de saúde;
6. trabalham;
7. têm níveis educacionais baixos e médios, no que tange à
religiosidade;
8. têm níveis altos de educação, no que tange ao bem-estar
existencial;
9.não estão em tratamento psicológico ou psiquiátrico:
possivelmente não sentem necessidade de tratamento nem indicação médica.
Já os preditores da saúde geral não foram muitos e baixo
também foi o percentual da variância explicada (8,7%); foram eles: bem-estar
existencial e saúde percebida. As pessoas que têm melhor saúde e menor presença
de distúrbios são aquelas com alto bem-estar existencial e que percebem sua
saúde como boa ou muito boa. A baixa variância explicada significa que existem
outras variáveis que explicam a saúde fora das variáveis contempladas por este
estudo.
Em termos científicos, olhando para o fenômeno e
subdividindo-o em partes, poderíamos dizer que a espiritualidade se relaciona
com a saúde geral justamente através do aspecto existencial (que é um dos
principais preditores tanto do QSG, quando dos seus outros 5 fatores). Isso
quer dizer que a espiritualidade influencia a saúde principalmente através dos
seus aspectos existenciais.
Frankl (1990) desenvolveu ao longo de sua obra uma ótica
existencial da espiritualidade e afirmava que uma missão a cumprir na vida, um
sentido a realizar (ou o que chamamos aqui de bem-estar existencial),
influenciava sobremaneira a saúde geral da pessoa. Essa missão poderia ser um
objetivo de vida adequado, alguém que se ame ou um trabalho a desenvolver, em
suma, uma atividade externa ao indivíduo que esteja de acordo com suas
aptidões, que ele seja capaz de enfrentar e que lhe ofereça desafios
permanentes. Ilustra essas considerações com a situação de campo de
concentração, onde sobreviviam e se mantinham íntegros aqueles que possuíam uma
visão positiva da vida e do mundo (mesmo frente a condições tão desfavoráveis).
A íntima relação com Deus, a sensação do sagrado na vida, as
emoções de compaixão e amor ao próximo, enfim, a religiosidade, não ajuda muito
se não é praticada, distribuída aos seres e ao mundo, contagiando o trabalho e
as relações, proporcionando uma visão global da vida individual e o seu sentido
para a família, a cidade, o universo. O que parece ocorrer é que a religião sem
o aspecto existencial não ajuda muito.
Se a espiritualidade é vivenciada e desenvolvida através de
uma religião, esta deveria estimular não somente o contato com o Absoluto, com
o divino, com a essência da vida, mas principalmente a aplicação dessas
experiências na vida cotidiana, no enfrentamento de situações corriqueiras, nos
pequenos desafios. De outra forma, ela pode servir como um ópio que cria um
reduto onde a interferência do mundo externo não é bem-vinda – assim como
naquelas piadas em que alguém bate na campainha, insiste, e tenta mais algumas
vezes, até que abre a dona da casa, muito mal-humorada e irritada, e diz:
“Tinha que bater justamente agora que estou a rezar pela paz no mundo?”. Isso
revela uma dissociação entre a religiosidade e a prática na vida cotidiana.
Então, quando vivenciada e praticada no mundo, a religião
redunda em bem-estar existencial e assim, tem uma associação maior com a saúde.
A perspectiva espiritual inclui conteúdos existenciais que por sua vez, tem
profundas implicações no bemestar físico e psicológico (Wong e Fry, 1998). Se a
perspectiva espiritual adotada pela pessoa não inclui esses conteúdos, podemos
supor que não beneficie, necessariamente, sua saúde.
Neste estudo, enfatizou-se o papel da espiritualidade na
saúde geral da pessoa. Os dados revelaram também o importante papel da
religião, seja para a melhora, seja para a diminuição da saúde. Se um dos
conteúdos básicos da Psicologia Transpessoal é o aprofundamento na religião e
nas experiências religiosas (Marques, 1996), e os resultados deste estudo
apontam a importância do bem-estar espiritual na saúde geral da pessoa, podemos
ressaltar o valor da Psicologia Transpessoal como uma teoria. A Psicologia
Transpessoal “busca uma síntese e oferece o estudo de outros aspectos ainda não
abordados, e que podem ampliar a visão do psiquismo humano” (França, 1997,
p.87). Ela se destina ao estudo de áreas comumente marginais à ciência
psicológica por serem vistas como esotéricas ou místicas, mas áreas, estas,
fundamentais no contexto de saúde geral do ser humano. O potencial de saúde da
espiritualidade foi aqui explorado; no entanto, estudos futuros deverão
aprofundar a temática, além de focalizar a patologia espiritual ou as
patologias decorrentes da prática espiritual, as chamadas “emergências
espirituais” (Grof e Grof, 1989) e também esclarecer que fatores psicológicos
facilitam ou inibem o contato e a compreensão do transpessoal e os efeitos das
experiências transpessoais na vida das pessoas.
As implicações da associação significativa entre
espiritualidade e saúde são amplas. Se ambas mantém uma correlação
significativa para a população, da qual esta amostra é parte, significa que a
espiritualidade é um recurso promissor de manutenção da saúde, prevenção, cura
e reabilitação. Assim, parece salutar que, em uma ampla consideração dos
fatores que compõem a saúde, a espiritualidade seja mais enfatizada. Os
resultados deste estudo sugerem que as pesquisas e a prática do trabalhador de
saúde podem se enriquecer com essa dimensão humana, sem receio de estar saindo
do fazer da Psicologia como profissão, e entrar no terreno místico.
O místico, fora da área psi., seria usar a espiritualidade
de forma deturpada, sem a compreensão do seu papel no desenvolvimento humano e
sem a genuína motivação de com ela beneficiar aqueles com quem trabalhamos. As
formas de acessá-la também podem ser consideradas místicas se não têm um
fundamento psicológico de apoio. A maior parte das técnicas que objetivam
trabalhar a espiritualidade, em uma visão de desenvolvimento de saúde, podem
ser fundamentadas tanto pela ótica psicológica como aproveitando insights das
tradições religiosas e esotéricas. A forma como essa integração é feita dirá se
o profissional está saindo do seu papel de psicólogo. É importante que o
psicólogo trabalhe com rigor metodológico e fundamente amplamente seu trabalho,
principalmente a partir dos conhecimentos da área da Psicologia, mas que não
desatenda dimensões tão caras, suas e daqueles com quem trabalha.
A dimensão espiritual não requer condições especiais; pode
ser trabalhada individualmente, em grupos, por pessoas com altos níveis
educativos e com analfabetos, em ambientes variados em um leito de hospital, em
pé, no Movimento Sem Terra – como tive a oportunidade de conferir –, nos
gabinetes psicológicos, empresas, pessoas de todas as idades – inclusive
crianças. Na prática, pode ser facilmente estimulada e desenvolvida, já que não
requer arsenal tecnológico e técnico. É uma dimensão melhor acessada pela
inspiração do profissional, pelo próprio desenvolvimento espiritual a que ele
leva a cabo, criatividade, empatia e fatores menos calculados. Os valores,
ética, sensibilização para o sagrado na vida, moralidade, geram um clima da
melhor qualidade para o desenvolvimento humano e auto-superação. Como diz
Kornfield (1997), se uma espiritualidade desenvolvida ama e cuida a vida, como
a saúde não melhoraria?
Referências
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Endereço para
correspondência
Luciana Fernandes Marques
Porto Alegre - RS
E-mail: lucianafm@terra.com.br
Recebido 10/10/02
Aprovado 18/02/03
* Doutora em Psicologia (PUCRS). Professora do Curso de
Abordagem Centrada na Pessoa (Pós-Graduação da LaSalle, Canoas-RS). Consultora
organizacional.
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Conselho Federal de Psicologia
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As informações disponíveis no site da Dra. Shirley de Campos
possuem apenas caráter educativo.
Publicado por: Dra. Shirley de Campos
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